Antes de qualquer coisa, quero pedir antecipadamente desculpas se o texto não estiver dos melhores. Resolvi escrever ainda escutando a música enquanto os créditos sobem na tela da TV. Sim, porque só agora assisti “Carta para além do Muros”. Aliás aqui vai a primeira porrada que me aflige nesse momento: Como algo tão urgente e necessário pode ter demorado tanto a chegar a uma pessoa como eu, socioeconomicamente privilegiada. Imagina quantas pessoas que precisavam assistir jamais terão acesso.

Sou editor de um site que fala sobre comportamento LGBT, estou longe de ser alienado, já tinha ouvido falar sobre o filme. Mas, com a correria do dia a dia, foi numa tarde de sábado de preguiça em casa que ao abrir a Netflix me deparei com “Carta para além dos muros”. Foi o play mais acertado dos últimos anos. Algo que eu já tinha que ter assistido a mais tempo, algo que todo mundo precisa assistir. Um filme que precisava sair do privilégio e escolha aleatória de um serviço de streaming e passar em todos os lugares, até mesmo nas salas de aula.

Com uma linguagem simples e direta, com depoimentos incríveis, com histórias reais, “Carta para além dos muros” consegue seu primeiro grande gol ao humanizar o discurso. Sem tom professoral, sem julgamentos, apenas mostrando pensamentos e histórias. A narrativa construída com uma linha do tempo, magistralmente endossada com registros de imprensa, é outro fator que contribui muito para o sucesso do filme. A relação direta de como o HIV e a AIDS (por favor, em 2019 não é possível que ainda precisemos explicar a diferença) é descrita ao longo do tempo pela imprensa é reflexo de como ela era e ainda hoje é tratada pela sociedade. É a prova cabal da causa e efeito e  que hoje faz números de infectados voltar a crescer.

Mas há outros aspectos dignos de aplauso em um filme que não pretende ter o seu próprio discurso ou moral sobre o assunto (embora qualquer pessoa sensível perceba que nas entrelinhas isso fica claro). “Carta para além dos muros” expõe o assunto de uma maneira perfeita e deixa que cada expectador defina sozinho qual parte o mais toca e como será tocado. Mas é impossível não passar horas refletindo (ou escrevendo, no meu caso) depois de assistir a um documentário tão impressionante.

Já li muito sobre o assunto, mas me surpreendeu descobrir algumas partes tão importantes da história do HIV e AIDS no Brasil. Saber da ação lindíssima dos comissários da Varig foi uma surpresa emocionante pra mim. Entender a história, todo nós sabemos, é o primeiro passo para que possamos evoluir. Nesse sentido, relembrar que foi o movimento civil que pressionou governantes que pouco se preocupavam com o assunto a agir é ao mesmo tempo motivo de orgulho e revolta. Quantas vidas poderiam ter sido salvas, quantas mortes poderiam ter sido mais dignas, se não se tivesse fechado os olhos para o rápido crescimento a epidemia nos anos 80. O preconceito expos a sua face mais cruel. Enquanto era o “câncer gay” (acredite isso foi escrito em letras garrafais em capas de jornal) não era motivo de preocupação dos governantes. Para muitos talvez fosse até uma solução.

O papel da religião foi e continua sendo um dos grandes causadores de problema. A negação do uso de camisinha pela Igreja Católica, a criminalização do comportamento sexual pelas Igrejas Evangélicas, atrasaram e continuam atrasando muito a proliferação da informação. Se a AIDS mata, a falta de informação também. E negar o acesso a prevenção é um crime tão odioso que é sim digno no mínimo de ser chamado de coautor dessas mortes.

A falta de acesso a informação é hoje o principal obstáculo para o HIV e a AIDS. O primeiro pelo fato das medidas de prevenção não serem abertamente debatidas e não chegarem a quem precisa. Vivemos um momento em que falar sobre sexualidade na escola para muitos é quase que um crime, que vai “acelerar a sexualidade” das crianças. O que esquecem é que essas crianças/adolescentes hoje são o grupo etário onde está o maior crescimento de infecção. Há muitos que culpam esse novo boom a uma “geração que não viveu os horrores da epidemia” ou a “banalização da doença”. Esse discurso é tão falho quanto perigoso. Não só é inverídico (e isso fica claro no documentário), quanto transfere para o jovem a “culpa” pela infecção.

Na escola o assunto não deve ser tratado, entre familiares há um tabu. Aonde o jovem vai buscar a informação? Na internet um grande número de informações causam mais medo do que ensinam a se prevenir ou a saber lidar com o HIV, uma vez infectado. O estigma faz com que dificilmente pessoas com HIV falem abertamente sobre o assunto, não criando assim referências pessoais para que se possa buscar informação. Não há uma geração alienada. O que existe é uma geração onde a informação não chega ou, quando chega, é transmitida de forma rasa e banal.

Se a informação não está chegando a quem devia, se o assunto sexualidade ainda é um tabu, imagina quando focamos na população LGBT. Essa, em uma idade que está descobrindo a sua sexualidade, ainda tendo que lidar com medos e questionamentos de uma sociedade que não encara com normalidade todo tipo de sexualidade. Essa nem sempre tem a quem procurar para conversar sobre seus desejos e atos. Essa não se sente representada. Menos informação, mais “culpa” e o resultado não poderia ser outro.

Se levantarmos os números atuais dos casos de HIV e de AIDS fica claro ainda outro fator importante: o social. Apesar do número de novos infectados pelo HIV crescer mais entre brancos, o número de AIDS cresce mais na população negra. Essa incongruência numérica só pode ser explicada por um motivo: temos uma epidemia social. A falta de acesso ao teste e tratamento ainda é um problema que não conseguimos resolver. Se na ponta somos reconhecidos internacionalmente pelo trabalho de tratamento de pessoas com HIV, não soubemos ainda garantir o acesso a todos de forma verídica. Como pode isso acontecer se há fornecido pelo SUS? A resposta só pode estar na falta de acesso a informação e ao teste, além do medo do preconceito social ao ter acesso ao tratamento. Ter remédio dentro de casa ou até mesmo busca-lo no serviço médico pode causar pânico a quem teme por como a sociedade o vai encarar (e se você acha isso bizarro, pense quantos têm medo de usar PrEP ou assumir que o fazem pelo temor de como serão julgados).

Tudo isso ainda precisa ser somado a uma questão que nem mesmo o avanço da medicina no tratamento/prevenção do HIV e da AIDS foi capaz de resolver. Ainda há muito preconceito social com quem tem o HIV. Ajudados pelo avanço na medicina que faz com que a doença não tenha mais cara, o estigma faz com que “sair desse armário” seja tão difícil. Não há culpa de quem não se sente confortável para tal. Há sim culpa de como ainda todos encaramos essa questão. E isso só piora a situação. Aumenta a não referência (seja para se educar ou para não pirar ao receber o teste), dificulta o debate, piora o acesso à informação.

Assim como quando a epidemia explodiu nos anos 80, governantes voltam a lavar sua mãos, dessa vez culpando a alienação dos jovens pelo aumento dos casos. Assumir a sua culpa para isso seria tão digno quanto é urgente. A sociedade também tem sua parcela de culpa. Afinal é mais fácil fingir que o assunto não existe, ou usar o fato de hoje ser uma situação controlável, para justificar a falta de debate. E assim seguimos sem questionar se não estamos falhando ao não tratar de sexualidade nas escolas e dentro de casa.

Por tudo isso, “Carta para além dos muros” é tão importante e  necessário. Por tudo isso é um documentário brilhante “escondido” da grande massa, “limitado” ao acesso de quem tiver a disposição e a oportunidade de procurar em um serviço de streaming. Por tudo isso deveria, mas não será exibido nas escolas. Depois é mais fácil culpar os outros.

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